quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Conto



Imaginação

  - Você nem chega perto de entender a mente dele... Posso tentar esboçar, mas ela é tão imaginosa que levaria duzentos anos de imaginação sua para chegar perto da compreensão dele... Digamos que um grupo queira roubar um banco. Eles gastarão alguns dias para imaginar como iniciar essa empreitada, e pior, terão de estudar o banco inteiro, por meses, talvez vários para entender o banco todo, seus alarmes, seguranças, dias, horários, tudo... Certo?
  - Certo...
  - Já ele em um dia teria tudo pronto em sua imaginação...
  - Como assim?
  - Ele tem a capacidade de imaginar hipertrofiada, de um jeito fora do comum até para quem imagina bem... Ele em um dia, nesse caso do banco, imaginaria tudo, cada mínimo detalhe, teria tudo, todas as possibilidades desse banco, em alarmes, seguranças, pessoas, até os rostos, roupas, tudo... Quando digo tudo não é exagero... Então se ele fosse roubar o banco, ele em um dia já teria tudo que ele precisa, pois sua imaginação teria imaginado tudo, e de alguma forma qualquer situação que ele se colocar já estaria dentro de seu universo de possibilidades, ele já estaria pronto, sua imaginação já teria preparado sua consciência...
  - Mas isso é só com o banco, por exemplo?
  - Não, com tudo! Ele imagina todo o mundo antes dele, cada instante do olhar dele só concretiza o que a imaginação dele prévia já tinha imaginado... É tão fora do comum que ao sair do quarto, ele imagina que atrás da porta do seu quarto pode haver de tudo, tudo mesmo! Campos de futebol, quadras, outras portas, ambientes doidos pintados de roxo, um campo de refugiados, um restaurante, uma faculdade, até mesmo um banco... Tudo!
  - Mas quando ele sai, ele não se decepciona por ser diferente do que ele imaginou? Ou ao menos não atender todas essas possibilidades?
  - Mas quem disse que é diferente do que ele imaginou? Pelo contrário... E se não atende suas várias imaginações, isso não o decepciona ou desanima, pelo contrário, faz ele imaginar mais um monte de absurdos para o instante seguinte, para seu próximo passo, para seu próximo instante de vida. A imaginação dele jamais pára...
  - Então ele sabe como é o universo inteiro!
  - Agora quem não entendeu fui eu...
  - Ora, simples. Se ele imagina tudo a cada instante de vida, e uma de suas imaginações se concretiza em vida, que é o instante em que ele vive, mas já imaginando uma próxima possibilidade, ou melhor, várias outras possibilidades, ele já imaginou todo o universo, todas as galáxias, todas as formas de tudo, até de possíveis vidas se é que podemos falar vidas dentro dessa imaginação...
  - Não tinha pensado nisso... Verdade, ele já foi até o fim do universo e voltou, mas o problema é que ele nem sabe, porque dentro desse universo infinito de possibilidades ele não sabe qual realmente se concretizaria...
  - Verdade... – meio triste – Que estranho, no fundo ele sabe tudo e não sabe...
  - Mas em compensação se você for tentar conversar com ele, parecerá um retardado mental, que mal consegue falar...
  - Nossa, mas por quê?
  - Justamente porque sua hipertrofia imaginária faz seu cérebro se ocupar disso, e desses universos, e ele mal consegue articular palavras, frases, uma idéia que seja, porque seu pensamento é tão rápido e tantas coisas o perpassam em um único instante, que ele não consegue dar forma a esses tão gigantescos e abstrusos pensamentos e imaginações... Acredite, ele já imaginou de tudo, e continua a imaginar...
  - Mas se ele imaginou tudo, como continua?
  - Porque dentro de uma imaginação, ele a varia, e isso vai até o sem limite, o sem tamanho, o infinito...
  - Não entendi...
  - Veja, digamos que ele imagina essa nossa conversa, essa cena toda, inclusive com as palavras e diálogos (ah sim, porque as palavras não escapam da imaginação dele, não são apenas cenas, quando tudo é tudo...). Então, dias depois, digamos que estejamos juntos e isso dê a sua mente uma nova possibilidade de imaginação, ele voltará a pensar a antiga imagem que teve, mas com detalhes mudados, palavras mudadas e isso ao infinito... Por exemplo, ele imaginará essa cena, mas nossa roupa de uma cor diferente... Depois imaginará essa conversa com uma única palavra diferente dentro da conversa inteira, e depois mais outra palavra, até mudar o discurso inteiro! É sem fim...
  - Mas ele consegue? Ele teria de ter um tempo infinito também para isso...
  - Consegue, ele faz isso em um instante, é absurdo, acredite...
  - Ele no fundo sabe todos os destinos, o seu, o meu, o dele, o de todas as pessoas, os caminhos da humanidade, as invenções, todos os discursos, palavras, obras de arte, universos, poesias, músicas... Tudo!
  - Sim...
  - Mas não pode, nem tem como reproduzir e trazer isso a nós...
  - E também não sabe, qual dessas imaginações vai virar fato...
  - Bom, mas agora pensando, se realmente isso acontecer, e for verdade que tudo isso transpassa em sua mente, como você sabe disso se ele parece um retardado mental falando, como você disse?
  - Sim... Boa pergunta... Isso é uma longa história...
  - Digamos que minha curiosidade me dará todo o tempo para ouvir...
  - Bom... Difícil até começar... Veja, ele já tinha nascido, e em um dos exames desses que se fazem hoje nos bebês, trazia uma diferenciação na forma de agir do cérebro... Como eles chegaram a isso, não me pergunte, porque não sei. Mas o doutor, ao invés de desanimar e nos trazer uma “má notícia”, pelo contrário, veio sorridente, disse que havia chegado alguém tão fora dos padrões médicos e humanos, que certamente tinha algo de extraordinário nele. Na época, fez exames mais detidos no cérebro ao descobrir essa disfunção, que o médico disse ser no início proveniente de uma química, que o sangue tinha uma substância nunca vista, e ao ver de onde provinha essa substância era do cérebro e resolveram investigar melhor. Fizeram de tudo que possa imaginar, só faltou abrirem a cabeça da criança. Mas não chegaram a isso. Após tanto falatório, pesquisas, olhares e tudo que você possa imaginar de curiosidade médica, disseram que ele seria provavelmente muito, mas muito inteligente, a ponto de ultrapassar até o modo como conhecemos as coisas... Já pensou?
  - Nossa... Mas e aí?
  - Então, falaram para ficarmos despreocupados, que todas as análises indicavam sem dúvida alguma que ele seria super dotado, até mais que “super dotado”... Esse conceito seria pequeno para ele... Diziam que sua atividade cerebral já era desde o início fora do comum, que as ondas cerebrais e mais um monte de exames que fizeram, mostrava uma disfunção, sim, uma disfunção, só que “benéfica”.
  - E como você pode inferir disso todas essas coisas sobre imaginação?
  - Calma, posso contar?
  - Vai, vai, desculpa...
  - Começamos a cuidar dele, e o tempo passa como sempre haverá de passar... Ele foi crescendo, e víamos atitudes estranhas, ele como bebê, parecia já ser criança, ou pior (melhor?) como adulto! Ele já mexia em um pente de cabelo por exemplo passando no cabelo da mãe. Como ele sabia, jamais tinha visto? Ele sabia mexer em tudo e para que servia dentro da casa... Até aparelhos que eu comprei em promoção desses canais de televisão, que na verdade chegavam aqui e eu nunca soube fazer funcionar e desistia, jogava na caixa e deixava esquecido em um armário qualquer...
  - Claro, é estranho, mas daí a tirar conclusão dessa imaginação...
  - Está impaciente... Veja, só que apesar dessa “precocidade”, ou melhor, essa sabedoria inata, porque ele era mais que precoce, sabia mexer em coisas que nem eu sei até hoje como ele fez funcionar, mesmo com isso, ele jamais tinha pronunciado uma palavra sequer.
  - Nada?
  - Balbuciava, grunhia, mas tudo muito desconexo...
  - Desconexo para vocês, talvez fizesse o maior sentido dentro dos seus universos...
  - Sim, sim, mas até então nem sabíamos... Cresceu mais, cresceu mais, e os outros já falavam, e ele não conseguia falar, ficava um pouco amuado por não conseguir falar, triste... Ia para a escola, mas nas provas fazia desenhos e símbolos fora de qualquer compreensão... Lembro de pegar uma prova de matemática com símbolos tão abstrusos, obscuros que a professora ficou com medo e nos chamou... Eu realmente até hoje não sei o que aquilo tudo quer dizer... Mas deve ter algum sentido, bem provável...
  - Mas é por isso? E a imaginação?
  - Está com pressa? Você disse que sua curiosidade ia deixar todo tempo do mundo... Então... Um dia chegamos em casa, ele estava tão triste, tão abatido, algo estava acontecendo, ele tentava dizer, desenhava no papel, mas era ininteligível para mim, não formava bem palavras, mas ele sempre parece estar pensando em algo, era como se tivesse um rio, ou melhor, um mar inteiro acontecendo, mas era uma revoada e nem tinha como dar forma a esse mar, ele apenas escoava... Fomos novamente ao médico. Infelizmente o médico que sabia da história e tinha feito todos os procedimentos e acompanhara tudo de perto tinha morrido, meses antes. Contou a história para um aluno seu do hospital, e este resolveu pegar o caso. Contamos tudo, absolutamente tudo para o médico, e perguntamos por que o falecido médico tinha nos despreocupado de sua “super dotação” mental e não entanto mal conseguia falar, desenhava coisas sem nexo, tudo fora de um padrão... Entende?
  - Sim, sim, e o que o médico fez?
  - Mais uma bateria gigante de exames, agora com mais tecnologias, mais precisões, mais detalhamentos... Novamente o mesmo resultado, que sim, ele era super dotado, fora de qualquer padrão, aliás, nem tinha como chamar super dotado, porque não dava para medir ele pelas “réguas comuns”... Que sua atividade cerebral era incessante e sem paralelo no mundo, que era um caso mais que raro, porque era único, singular mesmo...
  - E daí?
  - Insistimos com o doutor, como podia ser tudo isso e nem conseguir falar?
  - Talvez esteja justamente aí o problema, seu pensamento está fora das nossas formas de pensamento...
  - Sim pensei nisso, mas esse pensamento tão extraordinário, teria de entender ao menos o ordinário, certo?
  - Mas e se as bases desse pensamento extraordinário nem estiverem no ordinário? Nem daria para falar em pensamento “extra”-ordinário, porque ele nem se fundamenta no ordinário... Entende?
  - Mais ou menos, mas acho que sim... Talvez, mas ainda assim me intrigava, uma mente assim tinha de entender o nosso básico... Insisti com o doutor que precisava entender o que acontecia, que me adianta, ou até mesmo para ele uma mente desse porte que não consiga dizer toda essa coisa “extra-ordinária”? Irá sempre parecer um retardado e com desenhos de formas estranhas? Insisti com o médico, alguma coisa tínhamos que descobrir, sem chance. Ele aceitou a empreitada. Lembrei que na época do nascimento o médico tinha dito de uma substância jamais vista, perguntei se nesse meio-tempo estudaram algo, se algum elemento foi descoberto...
  - E ele?
  - Disse que desconhecia o que eu estava falando, resolveu ir às anotações antigas do seu professor, procurou isso que eu dizia, encontrou, mas pareciam anotações desconexas, estranhas... Resolveu experimentar tudo de novo, estudaram novamente o menino, até o fim... Realmente algo diferente saía do cérebro do garoto. Ele disse que ia estudar e enviar para químicos de confiança e que voltássemos semanas depois...
  - E enquanto isso o garoto?
  - Ficava abatido, parecia que tinha algo para dizer, mas não conseguia... Um dia chorou... Ficamos todos desconsolados. O que podíamos fazer? Estávamos atados...
  - E depois?
  - Chegaram os resultados dos químicos, todos inconcludentes, que era alguma substância sem precedentes, que nada como aquilo tinha sido visto... E pior, como eu podia culpá-los? Enfim... O médico disse que ia fazer algo, que sua intuição ia lhe dizendo a algum tempo, ele me explicou por cima, disse que as estruturas morfológicas do menino eram idênticas aos demais, embora a atividade fosse absurdamente maior além de excretar essa substância nunca vista, então que ele iria pesquisar um sedativo das células dessa região de super atividade e assim faria ela diminuir seu ritmo e quem sabe algo disso poderia ter algum resultado, ainda que imprevisto...
  - Mas e a saúde do garoto, se ele tem uma atividade fora do comum nessa região, sedá-la não podia acontecer algo?
  - Sinceramente? Não sei, mas eu aceitei, pois qualquer coisa era melhor que esse tormento do garoto...
  - E o que houve?
  - Duas semanas ele veio com uma injeção, disse que tinha chegado ao que queria, e só precisava do meu acordo com aquilo...
  - Você aceitou?
  - Sim, a equipe toda se mobilizou, o hospital inteiro, deixamos ele em um quarto separado, e o médico deu a injeção...
  - E então?
  - Ele ficou uns minutos com os olhos fechados, e de repente abriu, quando abriu estava falando normalmente!
  - Sério?
  - Sim, e enquanto falava o médico anotava tudo, disse que o efeito da substância podia durar entre meia hora a uma hora...
  - E o que ele dizia? Dizia tudo perfeitamente?
  - Sim perfeitamente bem! Disse o que acontecia, disse que seu cérebro era mais que uma máquina fora de controle, que sua imaginação ia tão longe que já tinha visto tudo, que ele estar ali falando também já tinha sido imaginado por ele, tudo, que a vida inteira dele era um imenso dejá vu... Ficamos assustados de início, mas fomos ouvindo... Ele explicava que o turbilhão de sua imaginação não dava espaço para falar, para explicar, para coordenar o próprio pensamento, e que seu pensamento estava tão distante das idéias como as concebemos que até explicar isso era difícil, disse que ficava triste por não conseguir dizer todas essas coisas, que chorou por estar sozinho, por sua imaginação hipertrofiada e sem comunicação... Disse tudo, tudo de sua imaginação, cada detalhe, mas depois de vinte minutos começou a falhar sua fala novamente, olhei para o médico, queria ouvir mais, queria saber mais, e o médico não sabia me dizer o que era...
  - Não era o funcionamento anormal da região que esgotou a sedação?
  - O médico disse ser o mais provável... E agora fazia sentido ele saber mexer e manusear tudo que estivesse em sua frente... Aquilo era mais que corriqueiro para ele, porque ele já tinha imaginado tudo... Aqueles desenhos estranhos devem ser imaginações de coisas que nem estamos perto de conceber. Ele vivia um retiro alucinante em si mesmo. Mas pelo menos quando ele entrou novamente em sua função “normal” de imaginação, seu rosto estava mais aliviado, menos duro, mais calmo... Eu mesmo me senti muito melhor...
  - E agora?
  - Ele vive seus universos, e de tempos em tempos o sedamos para que conte o que queira contar...

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